Sim, isso é perfeitamente possível. A depressão está, de fato, contida dentro do transtorno bipolar, ou seja, a depressão é uma das fases do transtorno bipolar. Portanto, quando um indivíduo apresenta uma síndrome depressiva, ou seja, quando ele encontra-se com sintomas de humor deprimido, em alguns casos, o seu diagnóstico pode não ser o de transtorno depressivo maior (ou simplesmente depressão), mas sim, essa fase depressiva pode fazer parte de um quadro de bipolaridade.
O psiquiatra é o profissional devidamente treinado a conseguir identificar tais tipos de depressões. Existem uma série de características, tanto no episódio depressivo que o paciente apresenta no momento atual, quanto outras características que serão investigadas de maneira minuciosa na primeira consulta psiquiátrica, e que vão nos ajudar a identificar se estamos frente a um quadro de depressão ou de bipolaridade. Vamos investigar: o temperamento da pessoa, tendências de comportamento, possíveis fases e episódios prévios de elevação de humor e aumento de energia, bem como sua história familiar de forma bastante detalhada, além de, como já explicado acima, prestarmos muita atenção à características da própria depressão que está ocorrendo no momento.
Iniciando pelas características do episódio depressivo, quais seriam aquelas que chamariam atenção do psiquiatra, para pensarmos que essa depressão possa fazer parte de um quadro de bipolaridade? Vamos lá:
Pacientes que apresentam ganho de peso e que passam a dormir excessivamente (mais de 10 horas por dia), especialmente quando associado à queixa de intensa falta de energia, durante o quadro depressivo. Depressão que se inicia muito cedo na vida, especialmente se ocorrer antes dos 20 anos de idade, e mais ainda se for na infância ou na adolescência: quanto mais precoce o início da depressão, mais sugestivo de um quadro de bipolaridade. Depressões repetidas, ou seja, mais de três episódios ao longo da vida, também chamam muito atenção para pensarmos em bipolaridade. Depressões que se iniciam de forma muito abrupta, ou seja, o humor cai de forma muito rápida e intensa, e da mesma maneira, melhora muito rapidamente, com duração de menos de três meses de sintomas. Outro sinal altamente sugestivo de depressão dentro de um quadro de bipolaridade é o paciente que faz uso de antidepressivo, mas não apresenta nenhuma resposta terapêutica a este medicamento (não melhora), ou então, tem uma certa melhora, mas com pouco tempo, tem a perda da resposta, recaindo novamente nos sintomas. Nas mulheres, o episódio depressivo ocorrer no período pós-parto, especialmente se for grave, nos faz também pensar em bipolaridade como uma hipótese. Chamo atenção de que nenhuma destas características, isoladamente, faz o diagnóstico de bipolaridade. Porém, precisamos prestar atenção a todas elas, além das próximas que vou comentar, e estarmos sempre atentos a tudo isso, pois somando-se evidências, poderemos enfim chegar ao diagnóstico mais correto.
Outras características do episódio depressivo que nos levam muito a pensar em bipolaridade são o que chamamos de características mistas, ou seja, quando o paciente apresenta, dentro do quadro depressivo, sintomas da polaridade oposta, ou seja, sintomas de ativação. Portanto, pacientes que estejam tristes, deprimidos, mas que tenham ao mesmo tempo um aumento do desejo sexual (seja por relações sexuais ou por masturbação) chama muita atenção, já que o normal numa depressão pura, seria a perda do interesse sexual, com redução da libido. O aumento da impulsividade para uso de substâncias (bebida alcoólica, drogas psicoativas, medicações sedativas), ou para compras, ou até mesmo para comida, também nos chama muito a atenção. Quando existe também agitação psicomotora, inquietação, durante a fase de tristeza, depressão, a bipolaridade tem de ser pensada como hipótese. Também, a sensação de pensamentos muito acelerados, tanto na quantidade como na velocidade dos pensamentos, durante a fase depressiva, é indicativo de ativação, dentro da depressão, ou seja, sintomas mistos que nos fazem pensar em bipolaridade. A irritabilidade externalizante durante a depressão, com tendência a se queixar muito, à discussão, a ter “pavio curto”, também é um sinal indicativo de sintomas mistos.
Ainda, uma característica de muita gravidade e que sempre nos deve fazer pensar no transtorno bipolar como possível diagnóstico é a presença de sintomas psicóticos, ou seja, delírios (acreditar que está arruinado, ter culpa delirante, mais raramente: que está sendo perseguido) ou alucinações (ouvir vozes, geralmente de conteúdo negativo).
Com relação à história familiar, se na família daquele indivíduo existe o que chamamos de alta densidade genética, ou seja: três ou mais gerações (avô, pai, filho) com transtornos de humor (depressão ou bipolaridade) devemos considerar transtorno bipolar para o paciente. Lembrando que, com relação à história familiar, muitas vezes a família do paciente não tem diagnóstico de transtorno de humor, mas ao questionarmos sobre alcoolismo (hoje considerado como um “braço” da bipolaridade), traços de impulsividade, irritabilidade, “temperamento forte”, extroversão, tendência à discussão, em seus familiares, podemos nos surpreender com as respostas positivas.
Por isso, uma primeira consulta psiquiatra deve ser, sempre, demorada e detalhada. Uma “simples” depressão pode esconder um quadro mais complexo por detrás, que exige um tratamento diferenciado, completamente diferente, com medicamentos também diferentes. O risco de tratarmos uma depressão bipolar de maneira incorreta é que nunca será de fato alcançada a tão sonhada estabilidade, e o paciente passará uma vida alternando entre fases de pequenas melhoras e longas pioras.
Procure um psiquiatra que tenha tempo para te ouvir, que faça as perguntas corretas e preste atenção às respostas. E, mais importante do que isso, que saiba recalcular a rota quando perceber que o tratamento não está indo tão bem quanto o esperado.